A venda de indulgĂȘncias



No que consistia a doutrina das indulgĂȘncias? "Acreditava-se que Cristo em pessoa, a Virgem Maria e muitos santos tivessem ganhado, durante sua vida, um surplus de mĂ©rito que poderia ser distribuĂ­do entre os cristĂŁos menos praticantes da fĂ© e que haviam, ao contrĂĄrio deles, acumulado um dĂ©ficit em razĂŁo dos pecados cometidos, e, para expiĂĄ-los, deveriam passar um longo perĂ­odo de tempo no PurgatĂłrio.

Os papas, depositĂĄrios, atravĂ©s de Pedro, das chaves da Igreja, tinham acesso a esse tesouro e podiam estendĂȘ-lo aos pecadores que precisassem de uma diminuição na pena. Estes podiam, assim, privar-se de parte das riquezas acumuladas durante a vida terrena e receber em troca a riqueza espiritual dos santos.

Mesmo não sendo possível comprar a salvação, podia-se, no entanto, pagar pela remissão (mesmo total) da pena." (David Christie-Murray, 1998, p. 169.)

O auge dessa prĂĄtica se deu durante o pontificado de JoĂŁo de Mediei, o LeĂŁo X (1513-1521), que lançou uma aberta polĂ­tica de venda de indulgĂȘncias. 

Verdadeiros mascates percorreram a Europa vendendo "cartas de indulgĂȘncia", quase bĂŽnus-ParaĂ­so, que podiam ser comprados sem maiores formalidades, mas desconcertando muitos crentes genuĂ­nos.

Em 1517, foi divulgada a Taxa Camarae, uma lista das indulgĂȘncias previstas para os vĂĄrios pecados, com um tarifĂĄrio a elas referentes, reportado a seguir:

1. O eclesiĂĄstico que incorrer em pecado carnal, seja com freiras, primas, sobrinhas, afilhadas ou, enfim, com outra mulher qualquer, serĂĄ absolvido mediante o pagamento de 67 libras e 12 soldos.

2. Se o eclesiåstico, além do pecado de fornicação, pedir para ser absolvido do pecado contra a natureza ou de bestialidade, deverå pagar 219 libras e 15 soldos. Mas se tiver cometido pecado contra a natureza com crianças ou animais, e não com uma mulher, pagarå apenas 131 libras e 15 soldos.

3. O sacerdote que deflorar uma virgem pagarĂĄ 2 libras e 8 soldos.

4. A religiosa que quiser ser abadessa apĂłs ter se entregado a um ou mais homens simultĂąnea ou sucessivamente, dentro ou fora do convento, pagarĂĄ 131 libras e 15 soldos.

5. Os sacerdotes que quiserem viver em concubinato com seus parentes pagarĂŁo 76 libras e 1 soldo.

6. Para cada pecado de luxĂșria cometido por um leigo, a absolvição custarĂĄ 27 libras e 1 soldo.

7. A mulher adĂșltera que pedir a absolvição para se ver livre de qualquer processo e ser dispensada para continuar com a relação ilĂ­cita pagarĂĄ ao papa 87 libras e 3 soldos. 

Em um caso anĂĄlogo, o marido pagarĂĄ o mesmo montante; se tiverem cometido incesto com o prĂłprio filho, acrescentar-se-ĂŁo 6 libras pela consciĂȘncia.

8. A absolvição e a certeza de nĂŁo ser perseguido por crime de roubo, furto ou incĂȘndio custarĂŁo ao culpado 131 libras e 7 soldos.

9. A absolvição de homicídio simples cometido contra a pessoa de um leigo custarå 15 libras, 4 soldos e 3 denårios.

10. Se o assassino tiver matado dois ou mais homens em um Ășnico dia, pagarĂĄ como se tivesse assassinado um sĂł.

11. O marido que infligir maus-tratos Ă  mulher pagarĂĄ Ă s caixas da chancelaria 3 libras e 4 soldos; se a mulher for morta, pagarĂĄ 17 libras e 15 soldos; e se a tiver matado para se casar com outra, pagarĂĄ mais 32 libras e 9 soldos. 

Quem tiver ajudado o marido a perpetrar o crime serå absolvido mediante o pagamento de 2 libras por cabeça.

12. Quem afogar o próprio filho pagarå 17 libras e 15 soldos (ou seja, 2 libras a mais que aquele que matar um desconhecido), e se pai e mãe o tiverem matado de comum acordo, pagarão 27 libras e 1 soldo pela absolvição.

13. A mulher que destruir o filho que carrega no ventre e o pai que contribuir para a realização do crime pagarão 17 libras e 15 soldos cada. Aquele que facilitar o aborto de uma criatura que não for seu filho pagarå 1 libra a menos.

14. Pelo assassinato de um irmĂŁo, uma irmĂŁ, mĂŁe ou pai, pagarse-ĂŁo 17 libras e 5 soldos.

15. Aquele que matar um bispo ou prelado de hierarquia superior pagarĂĄ 131 libras, 14 soldos e 6 denĂĄrios.

16. Se o assassino tiver matado mais sacerdotes em vårias ocasiÔes pagarå 137 libras e 6 soldos pelo primeiro homicídio e a metade pelos seguintes.

17. O bispo ou abade que cometer homicídio por emboscada, acidente ou estado de necessidade pagarå, para conseguir a absolvição, 179 libras e 14 soldos.

18. Aquele que quiser comprar antecipadamente a absolvição por qualquer homicídio acidental que possa vir a cometer no futuro pagarå 168 libras e 15 soldos.

19. O herege que se converter pagarå, pela absolvição, 269 libras. O filho do herege que tiver sido queimado, enforcado ou executado de qualquer outra forma poderå ser readmitido apenas mediante o pagamento de 218 libras, 16 soldos e 9 denårios.

20. O eclesiåstico que, não podendo pagar os próprios débitos, quiser se livrar de ser processado pelos credores entregarå ao pontífice 17 libras, 8 soldos e 6 denårios, e a dívida lhe serå perdoada.

21. SerĂĄ concedida a licença para a instalação de postos de venda de vĂĄrios gĂȘneros sob os pĂłrticos das igrejas mediante o pagamento de 45 libras, 19 soldos e 3 denĂĄrios.

22. O delito de contrabando e fraude aos direitos do prĂ­ncipe custarĂĄ 87 libras e 3 denĂĄrios.

23. A cidade que quiser que seus habitantes ou sacerdotes, freis ou monjas obtenham licença para comer carne e laticínio em épocas em que é proibido pagarå 781 libras e 10 soldos.

24. O mosteiro que quiser variar a regra e viver com menos abstinĂȘncia do que a prescrita pagarĂĄ 146 libras e 5 soldos.

25. O frade que, por conveniĂȘncia prĂłpria ou gosto, quiser passar a vida em um ermitĂ©rio com uma mulher darĂĄ ao tesouro pontifĂ­cio 45 libras e 19 soldos.

26. O apóstata vagabundo que quiser viver sem obståculos pagarå igual quantia pela absolvição.

27. Igual montante pagarĂŁo os religiosos, sejam eles seculares ou regulares, que queiram viajar em trajes de leigo.

28. O filho bastardo de um sacerdote que queira preferĂȘncia para suceder o pai na cĂșria pagarĂĄ 27 libras e 1 soldo.

29. O bastardo que queira receber ordens sagradas e gozar de seus benefĂ­cios pagarĂĄ 15 libras, 18 soldos e 6 denĂĄrios.

30. O filho de pais desconhecidos que queira entrar para as ordens pagarĂĄ ao tesouro pontifĂ­cio 27 libras e 1 soldo.

31. Os leigos feios ou deformados que queiram receber ordenamentos sagrados e ter benefĂ­cios pagarĂŁo Ă  chancelaria apostĂłlica 58 libras e 2 soldos.

32. Igual quantia pagarĂĄ o vesgo do olho direito, enquanto o vesgo do olho esquerdo pagarĂĄ ao papa 10 libras e 7 soldos. Os estrĂĄbicos bilaterais pagarĂŁo 45 libras e 3 soldos.

33. Os eunucos que queiram entrar para as ordens pagarĂŁo a quantia de 310 libras e 15 soldos.

34. Aquele que, por simonia, queira comprar um ou muitos benefícios se dirigirå aos tesoureiros do papa, que lhe venderão os direitos a preços módicos.

35. Aquele que, tendo descumprido um juramento, queira evitar qualquer perseguição e se livrar de qualquer tipo de infùmia pagarå ao papa 131 libras e 15 soldos. Além disso, darå 3 libras para cada um que ouviu o juramento.1

NĂŁo havia crime, nem o mais cruel, que nĂŁo pudesse ser perdoado mediante pagamento.

Naqueles anos, o dominicano Tetzel percorreu a Alemanha vendendo cartas de indulgĂȘncia. Mais tarde, Lutero descreveria sua obra da seguinte forma: "Seus poderes e graça foram ampliados de tal forma pelo papa que, se alguĂ©m violasse ou engravidasse a Virgem Maria, ele teria perdoado aquele pecado assim que uma quantia de dinheiro suficiente fosse colocada em sua bolsa... 

Ele redimiu mais almas com as indulgĂȘncias do que SĂŁo Pedro com seus sermĂ”es; quando era colocado em sua bolsa um dinheiro pelo PurgatĂłrio... a alma se elevava imediatamente para o ParaĂ­so; nĂŁo havia necessidade de comprovar dor ou arrependimento por um pecado se era possĂ­vel comprar indulgĂȘncias ou cartas de indulgĂȘncia. Tetzel vendia atĂ© o direito de poder pecar no futuro... qualquer coisa era garantida em troca de dinheiro."

A venda de indulgĂȘncias era apenas a ponta do iceberg de um fenĂŽmeno geral de corrupção na Igreja da Ă©poca. Os altos prelados acumulavam mais encargos e as relativas prebendas. 

Os bispos não residiam nas sedes a eles designadas: por exemplo, um nobre de Ferrara podia ser nomeado arcebispo na Hungria e nunca sair de sua casa, limitando-se a receber o dízimo dos fiéis de cujas almas devia cuidar.

O tĂ­tulo de cardeal (que era o "prĂ­ncipe", tambĂ©m em sentido terreno) muitas vezes nĂŁo era resultado de um longo percurso espiritual, mas da venda ou concessĂŁo do papa a parentes e amigos. 

Quem podia se permitir o comprava para o filho caçula ou ilegítimo, por vezes adolescente, como uma renda vitalícia. O próprio Leão X (1513-1521) se tornara cardeal aos 13 anos.

Os pontĂ­fices eram, em todos os aspectos, soberanos renascentistas. Como os reis, eliminavam os adversĂĄrios e se cercavam de homens de confiança. Como os reis, usavam a intriga e o homicĂ­dio polĂ­tico, como o papa Alexandre VI BĂłrgia (1492-1503), por exemplo, e seu filho CĂ©sar. 

Como os reis, declaravam guerra contra seus inimigos e conduziam as tropas na batalha; o papa JĂșlio II (1503-1513) foi retratado em armadura.3 Como os reis, tinham concubinas e filhos bastardos. E, como os reis, amavam as artes e protegiam os artistas. Mas os cuidados com as almas nada tinham a ver com tudo isso.

Livro Negro do Cristianismo - Dois Mil Anos de Crimes em Nome de Deus (CĂłd: 1915874)
Fo,Jacopo / Tomat,Sergio / Malucelli,Laura
Ediouro - Singular

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