Espantei-me, vibrei e sorri sozinho, com a honestidade do comentário de Voltaire, quando às portas da morte, tendo sido concitado a renunciar suas idéias contrárias à religião, afirmou que não o faria, tendo-lhe sido então, negadas a confissão e os derradeiros sacramentos.
Irredutível e convicto de suas posições ele exclama: “Morro crendo em Deus, negando a superstição religiosa, amando meus amigos e não odiando meus inimigos”.
Poucos – bem poucos mesmo de nós – são capazes de tamanha sinceridade: preferimos continuar repetindo uma cantilena que na vida diária de quase a totalidade dos cristãos não passa de uma fábula!
Não amamos nossos inimigos.
Aliás, vivemos defendendo posições teóricas completamente avessas à realidade de nossa fé e exercício delas na prática. Temos medo de assumir nossas antipatias e repulsas, e nos escondemos atrás de discursos piegas, defendendo propostas às quais intimamente não acreditamos, sabemos que somos incapazes de viver e de fato não vivemos. E isso tem um nome: Hipocrisia!
Quem convive comigo, sabe de minha incapacidade nata de guardar rancor – a Graça divina ajudou-me e adestrei meus impulsos animais para não dar vazão ao ódio – mas, não me peçam para dizer que amo meus inimigos como amo meus amigos!
E nem que ame os que me querem mal como a mim mesmo!
Já está mais do que em tempo de alguém começar a desmistificar essas coisas e tratar com a realidade: “A Verdade nos libertará”!
Tomás de Aquino dizia que “Amar era nada mais que simplesmente querer o bem de alguém”, e isso me parece mais real, pois é possível viver sem desejar o mal dos que sabemos nos detestar.
É claro, que, sobretudo os cristãos que têm medo da honestidade e franqueza, vão encontrar diversos argumentos e lançar mão de sofismas para “explicar” esse ou aquele modo com o qual Jesus referiu-se a esse amor.
Falando sério, todos temos conhecimento teórico sobre a qualidade do Amor ao qual o Mestre alude, e faríamos bem se pelo menos admitíssemos que, não somos capazes de alcançar aquele padrão, e bem poucos espécimes da humanidade o são, demonstrando a humildade e entrega completa ao próximo como Ghandhi, Chico Xavier e Madre Teresa de Calcutá (para falar em tempos mais recentes).
E nós sabemos a que tipo de amor Jesus se referia: vender bens e dar esmolas, se teu inimigo tem sede dá-lhe de beber, se tem fome dá-lhe de comer – nada a ver com conceitos filosóficos ou doutrinários no sentido especulativo – em resumo, caridade, e em um sentido que vai além de simples atos de bondade!
Quando nossos filhos – a quem amamos como não amamos nossos inimigos – cometem erros, qual a nossa reação, quais as nossas atitudes, mesmo quando demonstram ser incapazes de se corrigir?
Quando algum amigo ou alguma amiga – a quem amamos como jamais conseguiremos amar nossos inimigos – nos ferem ou decepcionam, como reagimos e qual a postura que adotamos com relação a esses comportamentos tortos?
Quando um membro qualquer da família necessita de ajuda e prontamente socorremos, teremos a mesma solicitude para com um estranho (um próximo) ou inimigo?
Tais coisas não acontecem fora, nem dentro das Igrejas!
A implacável lei biológica prevalece.
A falta de solidariedade, perdão, fraternidade, a incapacidade de aceitação do outro, a ação de amparar e proteger, coisas que facilmente fazemos para com aqueles que amamos – principalmente família – não se manifestam de forma alguma com relação aos que não fazem parte de nosso círculo íntimo de afeição e com quem não mantemos relacionamento mais próximo.
É simples assim: Jesus ao ressuscitar não matou Pilatos nem Herodes, não destruiu Anás e Caifás, mas seguramente não os amava como amava aos discípulos, sendo João destacado dentre eles como o “discípulo a quem Ele amava” (isso aqui é uma longa história, sobre o “porque” desse título aparecer somente no Evangelho escrito pelo próprio João).
E aquele mandamento de “oferecer o outro lado da face aos que te ferem ou caso alguém te tome a capa, deixar também a túnica”?
Ah, não é bem assim que Ele quis dizer – diz alguém.
Não é em sentido literal – afirma outro.
A verdade é que tais mandamentos serviam bem ao contexto da não resistência contra Roma, o que de certo modo era bom para os conquistadores, e preservação para os judeus conquistados que cometeriam suicídio – como demonstrou a história em diversas ocasiões – caso tentassem uma subversão do sistema. O amor verdadeiro visava preservá-los de um mal bem maior!
Mas isso requer uma longa e aprofundada análise.
Tenho um número bem considerável de pessoas que não me suportariam, perdoariam, e jamais me concederiam 1% da tolerância e sentido de verdadeira amizade a qual tributam aos que lhes são íntimos e fazem parte de seus afetos: e por qual motivo deveria eu exigir que fosse diferente?
Por enquanto, vamos permanecer crendo no ideal proposto por Jesus, e tentando crescer como gente, para alcançar a honestidade e grandeza de Voltaire, quando disse que: “Amava seus amigos e não odiava seus inimigos”.
Sábio, foi além do que poderíamos supor à primeira impressão.
Porque “odiar” continua sendo um sentimento, ocupando um lugar e sendo uma presença tão real quanto o amor no coração de quem cultiva o ódio, que pode até ser um “amor ao avesso”.
Mas “não odiar”, significa simplesmente, respeitar o direito que o outro tem de não gostar de mim, viver minha vida sem preocupação com isso e deixar que siga a vida e destino dele, sem que sua inimizade me cause qualquer mal-estar.
Pr Darkson Lira